sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Entrevista

"Minhas peças têm um moralismo agressivo. Nos meus textos, o desejo é triste, a volúpia é trágica e o crime é o próprio inferno. O espectador vai para casa apavorado com todos os seus pecados passados, presentes e futuros. Numa época em que a maioria se comporta sexualmente como vira-latas, eu transformo um simples beijo numa abjeção eterna.".


Manchete — Você está lançando o seu livro O Reacionário. Por que o livro e por que esse título?
Nelson Rodrigues — Este livro é uma das coisas mais sérias que já fiz na minha vida. Antes de falar de mim, mal ou bem, o sujeito deve ler o meu livro para saber o que eu acho, para saber do meu anticomunismo, saber do meu horror a Marx... Marx não toma conhecimento da orte. E nós exigimos de Marx a devolução de nossa alma imortal. Tudo isso está no livro. Agora, eu tenho uma virtude única, que é a seguinte: não tenho medo de passar por reacionário.
Querem me chamar de reacionário, chamem; querem me pichar como reacionário, pichem; Querem me pendurar num galho de árvore como ladrão de cavalo, pendurem. Mas eu sou homem que não aceita essa impostura gigantesca dos chamados países socialistas. Por mais que eu tenha horror da política, há muita política no meu livro. Eu acho que a política corrompe qualquer um, mas ela é um fato. Alias, vocês querem saber de uma coisa? Eu comecei a ficar anticomunista aos 11 anos de idade. Eu era um rato de jornal e nessa ocasião comecei a freqüentar o jornal A Nação, do Leônidas de Rezende, um comunista tremendo. Então, um dia assim sem mais nem menos, um rapaz me disse que, se o partido mandasse, ele estrangularia a sua própria mãe. Era só o partido mandar. A ONU, por exemplo, não considera o Brejnev um canalha. Para la, o fato de existirem intelectuais internados em hospícios não representa um ato atentatório aos direitos humanos.
Agora, vou te dizer uma coisa: eu pensei muito quando dei ao meu livro o título de O Reacionário. Porque no duro, no duro, eu não sou reacionário. A mais cruel forma de reacionarismo está nos países socialistas, na Rússia, em Cuba, na China, etc. Realmente, eu sou um libertário. Veja você: dois pobres-diabos cidadãos soviéticos seqüestraram um avião para deixar o paraíso e foram parar na Finlândia. Entregaram-se ao governo finlandês, que os devolveu ao Brejnev. Vão ser naturalmente fuzilados. Pois bem: Quem protestou contra isso? Onde está o manifesto dos intelectuais com 3.999 assinaturas? No duro eu sou um libertário. Eles, marxistas, é que são reacionários. Repito mais uma vez: os marxistas é que são reacionários.
Manchete — Nelson, ainda existe o padre de passeata? Eles ainda estão em plena atuação? Nelson Rodrigues — Ainda existem e estão em plena atuação. Sempre houve o padre de passeata. É o falso padre, o sujeito que trai a Igreja, que trai Cristo, trai Deus. Este é o padre de passeata. (...) Manchete — Nelson, você gostaria de viver agora ou na Idade Média? Nelson — Em primeiro lugar, eu não vejo nada de ruim na Idade Média, como você está insinuando. Foi uma etapa da história da humanidade, simplesmente. A Idade Média tinha seus valores formidáveis. A par disso, já afirmei que tinha uma alma de Belle Époque. Hoje estamos assistindo a uma destruição de valores. Nunca a maldade humana, a perversidade humana, a ferocidade humana foram tão violentas como em nossa época. Eu digo o seguinte: se houvesse uma guerra nuclear e o mundo acabasse, não se perderia grande coisa. Alias, de todas as épocas eu acho que a pior é exatamente a nossa. (...) Manchete — Mas você é muito amargo. Nelson Rodrigues — Como?
Manchete — Muito amargo em face da vida.
Nelson Rodrigues — Meu coração, meu anjo: a amargura é o elemento do artista. A amargura dá uma dimensão fantástica ao artista..
Nelson detestava qualquer tipo de violência, não importa se viria da direita ou da esquerda, o que ele não suportava era o fato de a esquerda criticar, na direita, métodos violentos usados por ela mesma quando no poder. Se intitulou no livro como "O reacionário" para fazer uma ironia com os que assim o chamavam. 



"Se eu apoiasse QUALQUER ato de violência, da direita ou da esquerda, seria um canalha". .
"Tão parecidos, Stalin e Hitler, tão gêmeos, tão construídos de ódio. Ninguém mais Stalin do que Hitler, ninguém mais Hitler do que Stalin.".

Fases de Nelson


4 Anos:
Uma vizinha, invade minha casa e diz para minha mãe que todos os meus irmãos podem frequentar a sua casa menos eu, Nelson. Como ninguém entendeu a razão da proibição ela contou que havia me visto aos beijos com sua filha Adélia, de 3 anos, eu sobre ela, numa atitude de tarado.

7 Anos:
Fui matriculado na escola e aprendi a ler muito rápido.

8 Anos :
Minha professora fez um concurso de redação na classe, o tema era livre. A Professora ficou eufórica e chocada ao ler a minha redação: Uma história de adultério. O marido chega em casa e pega sua mulher nua na cama e um vulto de homem pula a janela, ele pega uma faca e a mata, depois ajoelha pedindo perdão. Apesar do susto a minha redação foi a premiada.

12 Anos:
Aprendi a nadar no Hotel Copacapana Palace que ficava ao lado de minha casa. Conforme ia entrando na adolescência, ia me tornando melancólico e depressivo.

13 Anos e meio:Iniciei minha carreira de repórter policial. Especializei-me em escrever pacto de morte entre jovens namorados.

14 Anos:
Fui expunso do colégio por rebeldia e por viver condestando meus professores, principalmente o de português e história.
E fui pela primeira vez para dentro de um quarto com uma mulher, a qual era uma Prostituta.

16 Anos:
Publiquei meu primeiro artigo " A Tragédia de Pedra".

17 Anos e meio:
Presenciei o assassinato de meu irmão Roberto. A assassina Sylvia procurava por meu pai Mário Rodrigues por causa de uma materia estampada na capa do jornal que falava sobre o rompimento do seu casamento. Porém não o encontrou e resolveu falar com Roberto que leva um tiro na boca do estomago.
Após 67 dias da morte de meu irmão quem falece é meu pai.

19 Anos:
Tive minha carteira assinada pelo jornal O Globo.
21 Anos:Tive Tuberculose e arranquei todos os dentes por causa da febre que não passava. Comecei a usar dentadura.

25 Anos:Conheci Elza que também trabalhava no jornal. Então prestes a me casar a tuberculose atacou-me novamente. Depois de quatro meses internado terminei o noivado por causa de ciúmes. Mais por fim voltamos e nos casamos.
Após seis meses de casado, acordei e comuniquei a Elza que estava cego. Sequela da tuberculose. Depois de fazer tratamento consegui recuperar parte da visão, porém, 30% de cada olho estava realmente perdida.

28 Anos:
P
rocurei solução para o aperto que estava passando no casamento. Elza estava grávida. Certo dia passando em frente do Teatro Rival vi uma fila enorme para assistir A Família Lerolero. Uma Luz ascendeu, por que não escrever Teatro?

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Mais sobre mim ...


Sou o mais revolucionário personagem do teatro brasileiro, abrindo as portas à moderna dramaturgia do país. Percorri, contudo, um árduo itinerário, marcado por tragédias familiares e pela crítica contraditória. Desde meu primeiro texto, A Mulher Sem Pecado (1942), fui considerado ao mesmo tempo um imoral e um moralista, reacionário e pornográfico, um gênio e um charlatão, escandalizando, como nunca, o público e a imprensa especializada da época com meu teatro desagradável. Explorei a vida cotidiana do subúrbio do Rio de Janeiro e preenchi os palcos com incestos, crimes, suicídios, personagens beirando a loucura, inflamadas de desejos e agindo apaixonadamente, até matando, e diálogos rápidos, diretos, quase telegráficos, carregados de tragédia e humor.

Quando lancei Vestido de Noiva (1943), montado pelo grupo Os Comediantes, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, renovei o teatro do país, quer pelo texto quer pela direção de Ziembinsky, e obtive sucesso. Nos anos seguintes, no entanto, tive minhas peças interditadas pela censura, passei a ser sinônimo de obsceno e tarado e fiquei conhecido como autor maldito. Nasci à beira-mar no Recife, mudei-me com a família para o Rio de Janeiro, para o meu pai tentar a vida como jornalista, em 1916.

Fui o filho, no entanto, que brilhou na profissão. Aos 13 anos já era repórter policial do jornal A Crítica. Meu talento estendeu-se a todos os grandes jornais do Rio. Fanático torcedor do Fluminense, fui um grande cronista esportivo, ao mesmo tempo que escrevia reportagens policiais e folhetins romanescos. Obsessivo, escrevi 17 peças, centenas de contos e nove romances. Entre as peças, destacam-se A Falecida (1953), Os Sete Gatinhos (1958), Boca de Ouro (1959), Beijo no Asfalto (1960) e Toda Nudez Será Castigada (1965).

Fonte: www.netsaber.com.br

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Minhas Obras



Romances

Com o pseudônimo de Suzana Flagg: Meu destino é pecar (O Jornal 1944 e Edições O Cruzeiro 1944). Escravas do Amor ( O Jornal 1944 e Edições O Cruzeiro 1946). Minha vida ( O Jornal 1946 e Edições O Cruzeiro 1946). Núpcias de fogo (O Jornal 1948). A mulher que amou demais (Diário da Noite, 1949, inédito em livro), como Myrna. O homem proibido (Última Hora, 1951, e Editora Nova Fronteira, Rio, 1981) e A mentira (Flan, 1953, inédito em livro), ambos novamente como Suzana Flag. Como Nelson Rodrigues: Asfalto Selvagem (Última Hora, 1959-60, J.Ozon Editor, Rio, 1960, e Companhia das Letras -Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, coordenada por Ruy Castro, v. 7,1994); O casamento (Ed. Guanabara, Rio, 1966, e Companhia das Letras, v. 1, 1992).
Contos

Cem contos escolhidos - A vida como ela é... (J. Ozon Editor, Rio, 1961, 2v.) Elas gostam de apanhar (Bloch Editores, Rio, 1974); A vida como ela é - O homem fiel e outros contos (Companhia das Letras, S. Paulo, Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, Coordenação de Ruy Castro, v.2, 1992); A dama do lotação e outros contos e crônicas (Ediouro, 1996); A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é (Companhia das Letras, Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, v.5)
Crônicas

Memórias de Nelson Rodrigues (Correio da Manhã, Ed. Correio da Manhã, Rio, 1967); O óbvio ululante: primeiras confissões (O Globo, Editora Eldorado, 1968, Ed. Record e Companhia das Letras, Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, v.3); O Reacionário: memórias e confissões (Editora Record, 1977, e Companhia das Letras, Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, v.10)
À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol (Companhia das Letras, Coleção das Obras de N. Rodrigues, v.4); A menina sem estrela: memórias (Companhia das Letras, 1993, Coleção das Obras de N. Rodrigues, v.6);
A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol (Companhia das Letras, Coleção..., v.8); A cabra vadia: novas confissões (O Globo, Editora Eldorado, 1970, e Companhia das Letras, Coleção..., v.9); O remador de Ben-Hur: confissões culturais (Companhia das Letras, Coleção..., v.11).
Teatro

A mulher sem pecado, 1941; Vestido de noiva, 1943; Álbum de família, 1946
Senhora dos Afogados, 1947; Anjo Negro, 1947; Dorotéia,1949; Valsa nº 6, 1951; A falecida, 1953; Perdoa-me por me traíres, 1957; Viúva, porém honesta, 1957; Os sete gatinhos, 1958; Boca de Ouro, 1959; O beijo no asfalto, 1960; Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, 1962; Toda nudez será castigada, 1965; Anti-Nelson Rodrigues, 1974; A serpente, 1978.

(Todas as peças se encontram reunidas nas publicações Nelson Rodrigues - Teatro Completo, organizado e prefaciado por Sábato Magaldi, constando de Fortuna Crítica da Editora Nova Fronteira, Rio, 1981-89, em 4 vols., e da Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994,volume único).
Novelas

A morta sem espelho,1963 (TV Rio); Sonho de Amor, 1964 (TV Rio); O desconhecido, 1964 (TV Rio).
Outras

Flor de obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues, selecionadas por Ruy Castro (Companhia das Letras, Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, v.12).

Fontes: www.revista.agulha.nom.br

Manuel Bandeira

No primeiro momento, a glória é casta. Desde garotinho, a minha vida fora a desesperada busca da mulher primeira, única e última. No período da fome, o amor passara a um plano secundário ou nulo. Mas a glória é ainda mais obsessiva, mais devoradora do que a fome. Eis o que eu queria dizer: com o artigo de Manuel Bandeira, só eu existia para mim mesmo. Tudo o mais era paisagem.


 
Sim, ainda me lembro do primeiro dia do artigo de Manuel Bandeira. Depois do trabalho, fui para casa. Tranquei-me no quarto como se fosse praticar um ato solitário e obsceno. Comecei a reler o poeta. Primeiro, repassei todo o artigo, da primeira à última linha. Depois, reli certos trechos. O final dizia assim: - “Vestido de noiva, em outro país, consagraria um autor. No Brasil, consagrará o público”. Antes de mais nada, o poeta influiu na minha auto-estima.

A Dama do Lotação

" O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca "


A Dama do Lotação
Nelson Rodrigues

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
 — Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice.  Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!


A SUSPEITA

Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos.  Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!


A CERTEZA


Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!


A DAMA DO LOTAÇÃO


Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:
— Morri para o mundo.


O DEFUNTO


Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

O texto acima, extraído do livro "A vida como ela é...", Companhia das Letras - São Paulo, 1992, pág. 219, é um de seus mais famosos contos, tendo sido tendo sido adaptado para o cinema com grande sucesso.

E o Flamengo ...


Por onde vai, o Rubro-Negro arrasta multidões fanatizadas. Há quem morra com o seu nome gravado no coração, a ponta de canivete. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove, troveja, relampeja.

Cada brasileiro, vivo ou morto já foi Flamengo por um instante, por um dia.



Nelson Rodrigues

1913

" Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante " 

1913. O que a memória consciente preservou de Olinda foi um mínimo de vida e de gente. Eu me lembro de pouquíssimas pessoas. Por exemplo: - vejo uma imagem feminina. Mas é mais um chapéu do que uma mulher. Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada a ver com a vida real. Vagavam, diáfanos, por entre as mesas e cadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectral de retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eu não os ouvia. O que me espanta é que essa primeira infância não tem palavras. Não me lembro de uma única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meu primeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio.
Já falei da louca, filha da lavadeira. Foi a primeira mulher nua que vi na minha infância. E, ainda agora, ao bater estas notas, tenho a cena diante de mim. Eu me vejo, pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. Empurro a porta e olho. O espantoso é que sinto uma relação direta e atual entre mim e o fato, como se a memória não fosse a intermediária. A demente tem a tensão e o cheiro da presença viva. Mas como ia dizendo: - no fundo, encostada à parede, está a nudez acuada.

Minha infância . . .


Toda a minha primeira infância tem gosto de caju e de pitanga. Caju de praia e pitanga brava. Mas como ia dizendo: - ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais.
1913. O que a memória consciente preservou de Olinda foi um mínimo de vida e de gente. Eu me lembro de pouquíssimas pessoas. Por exemplo: - vejo uma imagem feminina. Mas é mais um chapéu do que uma mulher. Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada a ver com a vida real. Vagavam diáfanos, por entre as mesas e cadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectral de retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eu não os ouvia. O que me espanta é que essa primeira infância não tem palavras. Não me lembro de uma única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meu primeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio.


Delicado

O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.

 Delicado
Nelson Rodrigues

Primeiro, o casal teve sete filhas! O pai, que se chamava Macário, coçava a cabeça, numa exclamação única e consternada:

 — Papagaio!

Era um santo e obstinado homem. Sua utopia de namorado fora um simples e exíguo casal de filhos, um de cada sexo. Veio a primeira menina, mais outra, uma terceira, uma quarta e outro qualquer teria desistido, considerado que a vida encareceu muito. Mas seu Macário incluía entre seus defeitos o de ser teimoso. Na quinta filha, pessoas sensatas aconselharam: "Entrega os pontos, que é mais negócio!". Seu Macário respirou fundo:

— Não, nunca! Nunca! Eu não sossego enquanto não tiver um filho homem!

Por sorte, casara-se com uma mulher; d. Flávia, que era, acima de tudo, mãe. Sua gravidez transcorria docemente, sem enjôos, desejos, tranqüila, quase eufórica. Quanto ao parto propriamente, era outro fenômeno estranhíssimo. Punha os filhos no mundo sem um gemido, sem uma careta. O marido sofria mais. Digo "sofria mais" porque o acometia, nessas ocasiões, uma dor de dente apocalíptica, de origem emocional. O caso dava o que pensar, pois Macário tinha na boca uma chapa dupla. Quando nasceu a sétima filha, o marido arrancou de si um suspiro em profundidade; e anunciou:

— Minha mulher, agora nós vamos fazer a última tentativa!

NOVO PARTO

No dia que d. Flávia ia ter o oitavo filho, os nervos de seu Macário estavam em pandarecos. Veio, chamada às pressas, a parteira, que era uma senhora de cento e trinta quilos, baixinha e patusca. A parteira espiou-a com uma experiência de mil e setecentos partos e concluiu: "Não é pra já!". Ao que, mais do que depressa, replicou seu Macário:

— Meus dentes estão doendo!

E, de fato, o grande termômetro, em qualquer parto da esposa, era a sua dentadura. A parteira duvidou, mas, daí a cinco minutos, foi chamada outra vez. Houve um incidente de última hora. É que a digna profissional já não sabia onde estava a luva. Procura daqui, dali, e não acha. Com uma tremenda dor de dentes postiços, seu Macário teve de passar-lhe um sabão:

— Pra que luvas, carambolas? Mania de luvas!

EUSEBIOZINHO

Assim nasceu o Eusebiozinho, no parto mais indolor que se possa imaginar. Uma prima solteirona veio perguntar, sôfrega: "Levou algum ponto?". Ralharam:

— Sossega o periquito!

O fato é que seu Macário atingira, em cheio, o seu ideal de pai. Nascido o filho e passada a dor da chapa dupla, o homem gemeu: "Tenho um filho homem. Agora posso morrer!". E, de fato, quarenta e oito horas depois, estava almoçando, quando desaba com a cabeça no prato. Um derrame fulminante antes da sobremesa. Para d. Flávia foi um desgosto pavoroso. Chorou, bateu com a cabeça nas paredes, teve que ser subjugada. E, na realidade, só sossegava na hora de dar o peito. Então, assoava-se e dizia à pessoa mais próximo:

— Traz o Eusebiozinho que é hora de mamar!

FLOR DE RAPAZ

Eusebiozinho criou-se agarrado às saias da mãe, das irmãs, das tias, das vizinhas. Desde criança, só gostava de companhias femininas. Qualquer homem infundia-lhe terror. De resto, a mãe e as irmãs o segregavam dos outros meninos. Recomendavam: "Brinca só com meninas, ouviu? Menino diz nomes feios!". O fato é que, num lar que era uma bastilha de mulheres, ele atingiu os dezesseis anos sem ter jamais proferido um nome feio, ou tentado um cigarro. Não se podia desejar maior doçura de modos, idéias, sentimentos. Era adorado em casa, inclusive pelas criadas. As irmãs não se casavam, porque deveres matrimoniais viriam afastá-las do rapaz. E tudo continuaria assim, no melhor dos mundos se, de repente, não acontecesse um imprevisto. Um tio do rapaz vem visitar a família e pergunta:

— Você tem namorada?
— Não.
— Nem teve?
— Nem tive.

Foi o bastante. O velho quase pôs a casa abaixo. Assombrou aquelas mulheres transidas com os vaticínios mais funestos: "Vocês estão querendo ver a caveira do rapaz?". Virou-se para d. Flávia:

— Isso é um crime, ouviu?, é um crime o que vocês estão fazendo com esse rapaz! Vem cá, Eusébio, vem cá! Implacável, submeteu o sobrinho a uma exibição. Apontava:

—  Isso é jeito de homem, é? Esse rapaz tem que casar, rápido!

PROBLEMA MATRIMONIAL  

Quando o tio despediu-se, o pânico estava espalhado na família. Mãe e filhas se entreolharam: "É mesmo, é mesmo! Nós temos sido muito egoístas! Nós não pensamos no Eusebiozinho!". Quanto ao rapaz, tremia num canto. Ressentido ainda com a franqueza bestial do tio, bufou:

— Está muito bem assim!

A verdade é que já o apavorava a perspectiva de qualquer mudança numa vida tão doce. Mas a mãe chorou, replicou: "Não, meu filho. Seu tio tem razão. Você precisa casar, sim". Atônito, Eusebiozinho olha em torno. Mas não encontrou apoio. Então, espavorido, ele pergunta:

— Casar pra quê? Por quê? E vocês? — Interpela as irmãs: — Por que vocês não se casaram?

A resposta foi vaga, insatisfatória:

— Mulher é outra coisa. Diferente.

A NAMORADA

Houve, então, uma conspiração quase internacional de mulheres. Mãe, irmãs, tias, vizinhas desandaram a procurar uma namorada para o Eusebiozinho. Entre várias pequenas possíveis, acabaram descobrindo uma. E o patético é que o principal interessado não foi ouvido, nem cheirado. Um belo dia, é apresentado a Iracema. Uma menina de dezessete anos, mas que tinha umas cadeiras de mulher casada. Cheia de corpo, um olhar rutilante, lábios grossos, ela produziu, inicialmente, uma sensação de terror no rapaz. Tinha uns modos desenvoltos que o esmagavam.

E começou o idílio mais estranho de que há memória. Numa sala ampla da Tijuca, os dois namoravam. Mas jamais os dois ficaram sozinhos. De dez a quinze mulheres formavam a seleta e ávida assistência do romance. Eusebiozinho, estatelado numa inibição mortal e materialmente incapaz de segurar na mão de Iracema. Esta, por sua vez, era outra constrangida. Quem deu remédio à situação, ainda uma vez, foi o inconveniente e destemperado tio. Viu o pessoal feminino controlando o namoro. Explodiu: "Vocês acham que alguém pode namorar com uma assistência de Fla-Flu? Vamos deixar os dois sozinhos, ora bolas!". Ocorreu, então, o seguinte: sozinha com o namorado, Iracema atirou-lhe um beijo no pescoço. O desgraçado crispou-se, eletrizado:

— Não faz assim que eu sinto cócegas!

O VESTIDO DE NOIVA

Começaram os preparativos para o casamento. Um dia, Iracema apareceu, frenética, desfraldando uma revista. Descobrira uma coisa espetacular e quase esfregou aquilo na cara do Eusebiozinho: "Não é bacana esse modelo?". A reação do rapaz foi surpreendente.

Se Iracema gostara do figurino, ele muito mais. Tomou-se de fanatismo pela gravura:

— Que beleza, meu Deus! Que maravilha!

Houve, aliás, unanimidade feroz. Todos aprovaram o modelo que fascinava Iracema. Então, a mãe e as irmãs do rapaz resolveram dar aquele vestido à pequena. E mais, resolveram elas mesmas confeccionar. Compraram metros e metros de fazenda. Com um encanto, um élan tremendo, começaram a fazer o vestido. Cada qual se dedicava à sua tarefa como se cosesse para si mesma. Ninguém ali, no entanto, parecia tão interessado quanto Eusebiozinho. Sentava-se, ao lado da mãe e das irmãs, num deslumbramento: "Mas como é bonito! Como é lindo!". E seu enlevo era tanto que uma vizinha, muito sem cerimônia, brincou:

— Parece até que é Eusebiozinho que vai vestir esse negócio!

0 LADRÃO

Uns quatro dias antes do casamento, o vestido estava pronto. Meditativo, Eusebiozinho suspirava: "A coisa mais bonita do mundo é uma noiva!". Muito bem. Passa-se mais um dia. E, súbito, há naquela casa o alarme: "Desapareceu o vestido da noiva!". Foi um tumulto de mulheres. Puseram a casa de pernas para o ar, e nada. Era óbvia a conclusão: alguém roubou!  E como faltavam poucos dias para o casamento sugeriram à desesperada Iracema: "O golpe é casar sem vestido de noiva!". Para quê? Ela se insultou:

— Casar sem vestido de noiva, uma pinóia! Pois sim!

Chamaram até a polícia. O mistério era a verdade, alucinante: Quem poderia ter interesse num vestido de noiva? Todas as investigações resultaram inúteis. E só descobriram o ladrão quando dois dias depois, pela manhã, d. Flávia acorda e dá com aquele vulto branco, suspenso no corredor. Vestido de noiva, com véu e grinalda — enforcara-se Eusebiozinho, deixando o seguinte e doloroso bilhete: "Quero ser enterrado assim".

O texto acima foi extraído do livro "A vida como ela é...", Companhia das Letras- São Paulo, 1992, pág. 39.

Enfim nasci ...


Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife, Pernambuco. Vejam vocês: eu nascia na rua Dr. João Ramos e, ao mesmo tempo, Mata-Hari ateava paixões e suicídios nas esquinas e botecos de Paris. Era a espiã de um seio só e não sabia que ia ser fuzilada. Que fazia ela, e que fazia o marechal Joffre, então apenas general, enquanto eu nascia? A belle époque já trazia no ventre a primeira batalha do Marne. Mas por que “espiã de um seio só?” Não ponho minha mão no fogo por uma mutilação que talvez seja uma doce, uma compassiva fantasia. Seja como for, o seio solitário é, a um só tempo, absurdamente triste e altamente promocional.
Mas a belle époque não é a defunta que, de momento, me interessa. Tenho mortos e vivos mais urgentes. Por outro lado, minhas lembranças não terão nenhuma ordem cronológica. Hoje posso falar do kaiser, amanhã do Otto Lara Resende, depois de amanhã do czar, domingo do Roberto Campos. E por que não do Schmidt? Como não falar de Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem a atualidade, a tensão, a magia da presença física. Todavia, deixemos o Schmidt para depois. O que eu quero dizer é que estas são memórias do passado, do presente, do futuro e de várias alucinações.

Nelson por Nelson

Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino).